Igreja e a cerveja: uma santa união
Se você acha que a relação entre a Igreja Católica e a cerveja é, no mínimo, controversa, nós precisamos rever os seus conceitos! Deixe a desconfiança de lado e saiba mais sobre esta rica e duradoura união que rende bons frutos até os dias de hoje.
Por Guilherme Mattoso*
A origem da cerveja é incerta, mas historicamente há indícios de que ela já era conhecida pelos sumérios há pelo menos 6 mil anos. Até chegar à Europa, percorreu uma longa e diversificada trajetória… no Império Romano, quando o vinho prevalecia como a bebida mais consumida e apreciada, a cerveja era um produto associado aos povos bárbaros, como os gauleses, germanos, nórdicos e demais populações do leste. Isso diz muito sobre a geografia do consumo de ambos no Velho Continente…
Com o fim do Império Romano e o início da Idade Média, nós chegamos no período onde as histórias da cerveja e da Santa Igreja se cruzam. Naquele tempo, a fabricação e o consumo tiveram um grande impulso graças aos mosteiros, locais onde a bebida não foi apenas tecnicamente melhorada, mas também estudada, fabricada e comercializada. Por dominarem a leitura e a escrita, pode-se dizer que os monges foram os primeiros pesquisadores e mestres cervejeiros de que se tem conhecimento.
Dentre as técnicas aplicadas nos monastérios, uma das mais relevantes foi a utilização de ervas para aromatizar e conservar a bebida, como mírica, louro, sálvia, gengibre e… o lúpulo! O uso desta amarga flor, ingrediente básico na fabricação de qualquer estilo nos dias de hoje, é atribuída ao Mosteiro de São Gallo, na Suíça, pois confere aroma, destaca o sabor e atua como um conservante natural.
Além dos avanços técnicos, a Igreja exerceu também um papel fundamental na disseminação e popularização da cerveja. Muitos mosteiros funcionavam como pousadas e recebiam viajantes e peregrinos, oferecendo hospedagem, alimentação e, claro, o poderoso pão líquido. Assim, aos poucos, a fama e o consumo da cerveja ganharam a Europa e, veja só, os santos também tiveram um papel de protagonismo na difusão da cultura cervejeira. São muitos os casos de lendas, milagres e outros acontecimentos associados a importantes figuras religiosas daquele período.
Santo Arnaldo de Soissons, por exemplo, não só produzia como também promovia o consumo de cerveja; naquele tempo uma bebida vital, já que o Velho Continente sofria com a Peste Negra e nem sempre a água era potável. Em um de seus milagres mais conhecidos, o teto da abadia desabou, comprometendo o abastecimento na região. Santo Arnoldo, então, rogou a Deus para multiplicar o pouco que sobrou da bebida e suas preces foram prontamente atendidas. Ninguém ficou com sede na região!
Já Santa Hildegarda de Bingen é conhecida por trazer à luz o conhecimento do lúpulo aplicado à cerveja. É atribuída a ela a primeira menção sobre as propriedades conservantes e aromatizantes da erva: “Se alguém pretende fazer cerveja com aveia, deve prepará-la com lúpulo”. Em seu Livro das Propriedades – ou Sutilezas – das Várias Criaturas da Natureza, ela afirma que o lúpulo é uma planta “excelente para a saúde física” e “muito útil como conservante para muitas bebidas”.
Além e Arnaldo e Hildegarda, são muitos os santos que têm suas hagiografias com menções, milagres e fatos ligados à bebida, como Santo Adriano de Nicomédia, São Arnulfo de Metz, Santa Brígida de Kildare, São Columbano, São Mungo, São Patrício, Santo Venceslau, entre outros. Vale destacar que Santo Agostinho de Hipona é considerado oficialmente, pela Igreja Católica, o Padroeiro dos Cervejeiros.
Com o passar do tempo, a produção extrapolou os muros dos mosteiros e passou a ser feita também doméstica e comercialmente, mas os monges ainda exerceram um papel de destaque no aprimoramento técnico e na criação de novas receitas. Por exemplo, a Doppelbock, um dos mais celebrados estilos da região alemã da Bavária, surgiu no século XVIII, elaborada por monges da Ordem dos Mínimos de São Francisco de Paula, para ser consumida no período quaresmal. Detalhe: esta mesma cerveja, a Salvator, é fabricada até hoje, e é importada para o mundo todo, inclusive para o Brasil.
Ao longo da Idade Moderna, surgiram muitos tipos de cervejas, com identidades e características próprias, de acordo com o uso de ingredientes locais e a aplicação de novas técnicas de fabricação. Este momento prolífico, porém, sofreu um grande baque com a chegada da Revolução Francesa no final do século XVIII, que não só proibiu a produção, como também destruiu muitos mosteiros, provocando quase uma extinção dos centros produtores de cerveja. Os monges, porém, resistiram, preservaram as técnicas, guardaram as receitas e, aos poucos houve uma tímida retomada a duras penas, quase anonimamente, para consumo próprio.
A retomada da produção em grande escala só veio a florescer no século XX, muito em função da popularização da cultura cervejeira belga, incluindo aí as chamadas cervejas de abadia, sobretudo as trapistas, da Ordem Cisterciense da Estrita Observância. Das 12 cervejarias reconhecidas pela International Trappist Association, 6 encontram-se neste pequeno país… Atualmente, porém, a fabricação de cervejas em mosteiros não se restringe à Bélgica ou a outros países europeus. Mosteiros e fabricantes leigos no mundo inteiro, inclusive no Brasil, produzem seus próprios rótulos, inspirados nas tradicionais receitas monásticas, difundindo, com uma tacada só, a fé católica e a cultura cervejeira.
Vale ressaltar, por fim, que, ao contrário do que muita gente pensa, beber cerveja não é um pecado. A própria Igreja, no antigo Rituale Romanum, possui uma benção específica, própria para a cerveja! No século XVII, o papa Alexandre VII não só permitiu o consumo, como também autorizou a ingestão nos mosteiros durante o período da Quaresma, pois o pão líquido não quebrava o jejum…. O que leva ao pecado não é o consumo em si, mas as consequências do exagero. Quer exemplo maior do que o nosso querido Papa Emérito, Bento XVI, que no alto dos seus 91 anos não abre mão de brindar momentos especiais com um belo caneco de chope! Os caminhos do Senhor são infinitos e tenho a firme convicção de que um desses meios é a cerveja. Pense nisso…
*Guilherme Mattoso é jornalista, especializado em Comunicação Corporativa e Projetos Socioambientais, e entusiasta em temas como agricultura familiar, gastronomia e inovação. É também católico, casado e pai de um lindo casal de filhos; leitor compulsivo, apaixonado por cerveja, música, desenho, comida e viagens. Para mais informações, acesse: www.caipirismo.com.br
Comentários