O homem justo e tenaz em seu propósito
Iustum ac tenacem propositi virum ou O homem justo e tenaz em seu propósito (1)
Valores ou virtudes?
Atualmente um dos termos mais comumente usados no âmbito da educação, e em tantos outros, é o “valor”. No entanto, em muitos casos, as pessoas que proclamam a vivência de valores nem sequer leram alguma obra de Max Scheler ou de outro autor que discuta o tema da ética material dos valores. O abuso no uso dessa palavra tem levado, em muitos casos, a que o termo “valor” careça de qualquer sentido teórico-especulativo e, que, por isso, também seja incapaz de chegar ao ponto moral do dever. É de se notar que, inclusive, o conceito de valor foi assumido em vários documentos do magistério contemporâneo, sobremaneira nas publicações de São João Paulo II ao tratar dos “valores cristãos”.
Em outros casos, somos testemunhas da obsessão pelo desenvolvimento dos valores, que tem como efeito colateral, aparentemente de forma não intencional, o esquecimento quase total de outro conceito muito mais antigo e, embora, mais propriamente cristão: referimo-nos ao conceito de virtude. Alguém poderia objetar que o conceito de virtude foi desenvolvido anteriormente pelo filósofo pagão Aristóteles (2) e nisso haveria razão; é necessário recordar, no entanto, que esse mesmo conceito foi assumido por grandes doutores da Igreja e colossos da teologia, da envergadura de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino, dignificando as virtudes com a graça sobrenatural e temperando-as com o sabor da transcendência.
Seguindo essa mesma linha, São Tomás de Aquino (3) discorre acerca das chamadas virtudes teologais — fé, esperança e caridade (4) —, e as define como “hábitos operativos infundidos por Deus nas potências da alma para dispô-las a agir segundo o ditame da razão iluminada pela fé” (5). Recebem o nome de teologais porque seu objeto é o próprio Deus; desse modo, deve-se concluir que são infundidas por Deus mesmo, já que “os hábitos hão de ser proporcionados àquilo a que dispõem o homem” (6), e como a bem-aventurança excede qualquer capacidade humana, se faz necessário que seja o próprio Deus que infunda as virtudes diretamente (7). Esse tipo de virtude não pode ser obtida por puro esforço humano.
Um segundo grupo são as chamadas virtudes morais sobrenaturais, que também são infundidas por Deus, mas que, diferentemente das anteriores, não têm o próprio Deus como objeto, mas seu objeto é ordenar retamente os atos humanos ao fim último, sobretudo no que se refere aos meios que nos dirigem ao fim sobrenatural.
Do mesmo modo estão as virtudes morais naturais, que podem ser adquiridas e as quais o homem pode e deve esforçar-se para desenvolvê-las cada vez mais e, assim, alcançar uma perfeição a nível natural.
Entre essas virtudes naturais adquiridas existem quatro — prudência, justiça, fortaleza e temperança —, as quais a doutrina da Igreja denomina de virtudes cardeais, porque em torno delas orbitam todas as demais virtudes, assim como os filhos se reúnem em torno de suas mães.
Educar para ser senhor de si
Diferentemente da visão atual de valores, as virtudes não têm uma função puramente social, mas têm como norte que cada um seja mais “senhor de si mesmo”, e que, uma vez conquistada essa vitória, possa alcançar seu mais alto grau de perfeição e, assim, também, pode servir de um modo mais admirável à sociedade.
Um bom pai ou mãe pode conformar-se com simples bons desejos e puras intenções no que se refere à educação dos filhos. As virtudes são hábitos operativos, o que exige que se aplique todo o ímpeto e intencionalidade possível em sua ação. Assim, exige também a própria natureza dos filhos, disposta a receber dos pais com esse olhar atento que os caracteriza, sobretudo na mais tenra idade. A formação dessas virtudes naturais será de capital importância para a vida inteira dos filhos, tanto para seus projetos terrenos quanto transcendentes, haja vista que serão como uma espécie de colchão e base para a graça sobrenatural. Nunca deveríamos nos esquecer de um dos princípios mais importantes: “a graça não destrói a natureza, mas a pressupõe e a aperfeiçoa” (8). Oxalá essa frase de São Tomás de Aquino estivesse entronizada em todos os lugares, a fim de recordar os pais e filhos que Deus não quer anular a participação humana no caminha da bem-aventurança eterna.
A responsabilidade dos pais
Quando o Direito Canônico, em seu número 1055, enuncia a “educação da prole” como um dos fins do matrimônio, não se refere à formação puramente intelectual, que poderia ser entregue à responsabilidade de qualquer instituição de ensino, mas alude, de maneira especialíssima, àquela educação nas virtudes, que só se aprende de maneira natural e ótima no núcleo familiar e que, somente com grande dificuldade, poderá ser adquirida em outro ambiente ou lugar. Santo Tomás faz menção a esse aspecto ao dizer:
“Porque a natureza não pretende somente a geração da prole, mas também seu desenvolvimento e progresso ao perfeito estado humano, a saber, a virtude” (9).
Só na família, como a primeira sociedade natural, o mais próprio de cada ser humano se relaciona de maneira verdadeira. É por isso que nas famílias não podem existir máscaras ou segredos e, se houvessem, mais cedo ou mais tarde viriam a cair. Por quê? Porque somente na família a aceitação e o desenvolvimento integral da pessoa se fundamentam no que a pessoa “é” e no que a pessoa “faz”.
Em qualquer outra sociedade as pessoas são aceitas “desde que”. Um cantor será aceito e aplaudido por seu público desde que ele interprete canções que cheguem ao coração e mova os sentidos, mas se deixar de tocar o coração humano e não for capaz de utilizar as notas musicais da maneira correta estará condenado ao repúdio. Um jogador de futebol será ovacionado por milhares de pessoas nos coliseus modernos desde que consiga colocar a bola no gol do adversário; um médico será premiado desde que seja capaz de fazer descobertas e produzir avanços para a humanidade. E, o mais triste, ao observarmos a cada dia, que belas mulheres, capazes de deslumbrar os olhos de todos ao expressar a beleza da ordem e da perfeição física humana, são tratadas como objeto, ao mesmo tempo em que, com o passar dos anos, se esvai a beleza que possuíam, e que com ela também desaparece a aceitação que gozavam.
É na família, e somente nela, em que cada pessoa tem a oportunidade de ser querido e aceito pelo que se “é” e que ninguém mais poderia repetir. A família é o lugar precioso em que toda pessoa é “confirmada no amor”, como se alguém dissesse “que bom que você existe e que é você. O mundo não seria o mesmo sem você. Se não existisse nada seria igual”. É a confirmação do ato criador e é um dos motivos pelo qual o ato sexual humano não se chama puramente acasalamento, mas procriação.
É desnecessário dizer que quando falamos de família não nos referimos exclusivamente ao parentesco sanguíneo, mas destacamos o papel imprescindível dos pais, entendendo pai e mãe, ou aqueles que fazem as vezes destes, respeitando a ordem natural.
Embora pareça óbvio, os pais são os primeiros educadores de seus filhos:
“O filho é naturalmente algo do pai; por isso é de direito natural que o filho, antes do uso da razão, esteja sob os cuidados do pai. Seria, portanto, contrário ao direito natural que a criança antes do uso da razão fosse subtraído do cuidado dos pais e se dispusesse de qualquer modo contra a vontade dos pais” (10).
Qualquer outra instituição ou organização que pretenda tomar o lugar dos pais está violando a ordem natural, haja vista que tanto a sociedade educativa como o Estado têm somente um papel subsidiário e de apoio à criança da prole, já que a família não tem em si mesma todos os meios necessários para alcançar seu próprio fim. Aqui se destaca o cuidado especial que os pais devem ter para que seus filhos se formem no que é conatural, evitando todo possível doutrinamento ideológico por parte de alguma entidade educativa ou mesmo por parte do Estado que às vezes pretende usurpar a responsabilidade parental. Um exemplo muito claro disso é o desprezível e insistente objetivo de implantar na inocência das crianças e jovens a nefasta e venenosa “ideologia de gênero”. Os pais têm o direito e o dever de negar que seus filhos recebam essa destruição moral, que somente deixa uma bomba-relógio no coração desses pequenos. Essas e muitas outras ideologias crescem como o joio no meio do trigo e seus efeitos purulentos só são perceptíveis muitos anos depois. Em algumas ocasiões os pais exaltados se perguntam: “Mas como meu filho chegou a esse ponto? Quando aprendeu tantos vícios?”. A resposta é clara: do mesmo modo que na parábola, o inimigo vinha enquanto dormíamos e semeou o joio em meio ao nosso terno trigo. Devemos estar atentos e vigilantes porque em muitas ocasiões o inimigo se esconderá sob o nome de “tolerância” ou de “liberdade”.
Somos conscientes da dificuldade que isso implica, mas o ideal é que os filhos chegassem à escola com um desenvolvimento de virtudes de acordo com sua idade e que a instituição se encarregue por apresentar os conteúdos intelectuais e culturais que não podem ser exigidos no lar. São três as instituições que devem trabalhar de maneira harmônica em relação à formação da prole, cada uma com sua própria missão, como as cordas de um instrumento, para buscar a maturidade integral da pessoa: referimo-nos à família, à Igreja e ao Estado por meio de uma instituição educacional. A família, como a primeira sociedade natural, ofertando tudo o que tange à pessoa humana e que nenhuma outra instituição pode suprir; a Igreja, que junto com a família, se encarregará de prover todo o necessário para desenvolver a vida espiritual e sobrenatural; e, por último, o Estado e todas as instituições educativas, que devem colocar todo o seu empenho em levar à perfeição as faculdades intelectivas, cooperando sempre com as demais ordens anteriores.
Somos capazes de ver esse grande projeto, simultaneamente humano e divino, que carrega uma grande responsabilidade, ao qual não faltarão as graças necessárias para cumpri-lo se nos dispusermos completamente e sem reservas. Muitos pais desejariam encontrar um manual ou esquemas ricos e complexos, repletos de objetivos claros para seguir ao pé da letra e, assim, poder conseguir um resultado quase que matemático. Mas as pessoas não são assim.
A arte de educar os filhos versa sobre aproveitar cada momento cotidiano, por ínfimo e pequeno que seja. Desde a responsabilidade de acordar cedo e rapidamente colocar-se de pé para se preparar e ir à escola, até o venerável ato de beijar a mão dos pais e pedir a bênção antes de dormir. «Insiste com ocasião ou sem ela, repreende, roga, exorta com toda paciência e doutrina» (2Tim 4,2). O que importa não é tanto a envergadura ou importância social dos atos formativos, senão o ímpeto e intensidade que são colocados neles.
A importância do exemplo
Um dos meios mais importantes para formas nas virtudes é o exemplo, já que o agir segue o ser, e cada um age de acordo com o que “é”. Não se deve confundir o exemplo que os pais podem entregar, com um ideal de “exemplo perfeito”, já que isso levaria os pais a mergulharem numa frustração sombria. O exemplo ao qual nos referimos é esse exemplo humano, que luta cada dia consigo mesmo para ser mais e melhor, ou seja, o exemplo da inteligência que atua com retidão e da vontade que se aplica por inteiro no combate. Quando chegarem os momentos de frustração ou desespero seria bom fazer uso das graças de estado que são destinadas por Deus mesmo aos pais, fazendo a seguinte oração: “Senhor ajuda-me a ser como Tu, porque ele (meu filho) quer ser como eu”.
A virtude, que é um hábito operativo bom, necessita da repetição do ato para que se enraíze na alma dos filhos. Os pais têm a autoridade de dirigir os filhos para que ajam, para, assim, buscar a virtude; ou também podem ordenar que os filhos deixem de agir, de forma que se previna neles a formação de vícios. O pai há que ser como o agricultor que semeia e rega suas plantações, mas, do mesmo modo, elimina as pragas que poderiam destruir a colheita e que arranca as ervas daninhas que poderiam arruinar a qualidade dos frutos.
“Lê-se conjuntamente em Mt 23,8: ‘Um é vosso mestre e também Um é o vosso pai’. Que Deus seja pai de todos não exclui que também o homem possa ser chamado verdadeiramente de pai. Logo não se exclui, tampouco, que o homem possa chamar-se verdadeiramente de mestre” (11).
1 Horacio, De arte poética 5, 163
2 Aristóteles, Ética a Nicómaco, libro 2, 6
3 Segundo Antonio Royo Marín, na Teología de la perfección cristiana: “Sabe-se que a melhor classificação das virtudes morais infusas — todavia não superada por ninguém — é a realizada por Santo Tomás na Suma Teológica. Guarda um perfeito paralelismo com a classificação das virtudes adquiridas que fizeram os filósofos da Antiguidade, sobretudo Sócrates, Aristóteles e Platão. Eles — os filósofos — a retiraram de uma atenta e perspicaz observação dos movimentos da psicologia humana. E Santo Tomás, fundamentando-se em dois princípios teológicos fecundíssimos, a saber: que a graça não vem a destruir a natureza, senão a aperfeiçoá-la e elevá-la, e que Deus não pode ter menos providência na ordem sobrenatural que na natural, se estabeleceu um perfeito paralelismo e analogia entre essas duas ordens; sem que, com isso, se queira dizer que as virtudes morais infusas não são mais que ele aponta. Uma introspecção mais aguda e penetrante poderia descobrir algumas mais.
O que não pode ser dito a respeito das virtudes teologais e dos dons do Espírito Santo, porque, sendo estritamente sobrenaturais e não tendo paralelismo com a ordem natural, só podemos conhecer sua existência e seu número pela revelação divina; e na revelação consta que as virtudes teologais são unicamente três e os dons do Espírito Santo, sete”.
4 A fé reside no entendimento, e a esperança e a caridade, na vontade.
5 Sth, I-II, 62
6 STh, I-I, 51, 4
7 Cfr. STh, I-II, 51, 4 in c.
8 STh, I, 8, ad 2.
9 STh Suppl. q.41 a.l
10 STh II-II q.10 a.12
11 Santo Tomás de Aquino, De Magistro.
Bibliografía:
– M. SCHMAUS, Teología dogmática V : La gracia, 2 ed. Madrid 1962.
– A. ROYO-MARÍN, Teología de la perfección cristiana, Madrid 1954.
– J. TISSOT, La vida interior, Barcelona 1964.
– S. TOMÁS DE AQUINO, Suma teológica.
– S. TOMÁS DE AQUINO, De Magistro.
– D. ISAACS, La educación de la virtudes humanas, 12° ed. Eunsa. Navarra 1976.
– PIO XI, Carta encíclica Divini Illius Magistri, 31 de Diciembre de 1929.
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